Três horas de dor pura, não adulterada, tinham já passado. Não que fosse uma dor especialmente forte, tinha já passado por dores bem piores, daquelas dores que nos fazem querer enrolar no chão e chorar, que nos fazem querer arrancar a pele dos braços com os dentes.
Até esta dor não era desconhecida, já tinha passado por mim antes, as sucessivas picadas do tinteiro na pele nua, rasgando e criando ao mesmo tudo, deve ser esta a dor da criação, a pele abandona o seu estado natural e funde-se com a tinta, cria um conceito, cria um novo ser através da dor.
Mas nunca durante três longas horas. Tento nem pensar nisso, tento que a minha mente voe daqui e me faça esquecer que estou imóvel à três longas eternidades.
Falho redondamente, cada risco do tinteiro puxa-me violentamente de volta para a realidade, cada músculo das minhas pernas clama vingança, a pele massacrada do meu braço vai cair a qualquer momento.
Torna-se uma luta contra o meu corpo, fico reduzido ao mínimo que sou, é só a minha vontade que me impede de cair na súbita escuridão, só ela me impede de desistir. Quando aqui entrei ela, a minha vontade, já estava no seu limite, gasta por cinco anos de purgatório, batida e de lágrimas nos olhos por um ano de inferno. Não sei sequer como ela me aguenta de pé quando finalmente acaba.
Quando saio é já noite, um vento frio faz-me tremer tudo menos o braço, esse está dormente, a Fénix renascida dorme já encostada a mim, sou já outro e ninguém vê, ninguém se apercebe da mudança.
Caminho devagar pelas ruas mal iluminadas, passam por várias sombras que evitam ser vistas, mas não me importo nada, estou finalmente vazio, finalmente limpo, três horas de dor limparam todas as outras dores, apagaram todo o mundo passado para sempre, estou limpo e leve e livre, sou eu a negra Fénix que voa anichada no meu braço.
E atrás de mim, só as cinzas restam.
Só as cinzas.