Evito falar de mim.
Apresento pequenos momentos, brilhantes nadas, bugigangas decoradas, que dependendo do modo como as rodo nos dedos, se tornam cativantes, assustadoras, apaixonadas.
E, acima de tudo, evitam responder a perguntas incómodas.
Sobre mim.
Por vezes, a meio de uma conversa, um vislumbre de mim, uns parcos segundos imparáveis, salta para a luz das velas.
E paro, faço rir, puxo sorrisos.
E assim evito falar sobre mim.
Até aqui, em binário.
"Mas eu, sendo pobre, tenho apenas os meus sonhos; Espalhei os meus sonhos debaixo dos teus pés; Caminha suavemente, pois caminhas sobre os meus sonhos." W.B. Yeats
domingo, março 30, 2008
sábado, março 29, 2008
Manhã de Páscoa
É uma cena ridícula.
Tão ridícula que poderia fazer parte de um qualquer postal ilustrado da época pascal.
São oito da manhã, oiço o rádio dizer uns escassos metros das minhas costas, na mesma direcção de onde vem a luz cortante do sol, na mesma direcção de onde nasce esta morrinha, esta estúpida ameaça de chuva cujos passos sonoros nos meus ombros incomodam muito mais do que molham verdadeiramente.
É de certeza um sonho estúpido, um ridículo masoquismo imaginado, estou numa cama antiga, afogado em cobertores, a sonhar que estou à chuva, a sonhar que espero, de costas para o sol, um sinal.
Os segundos passam intermináveis, escorrem para dentro dos minutos como a chuva que finalmente cai decidida a molhar alguém escorre pelos meus ombros gelados, mal aquecidos pelo abraço do oleado verde do meu pai, preferia estar em camisa, mas ou continuo com o oleado vestido ou volto a pé. Antes eu gelar que encharcar os estofos.
A vedação estica, lá de longe vem o sinal.
Subo a marreta bem acima da minha cabeça, é uma ferramenta antiga, que o tempo e a fome de quem a manejava tornaram quase viva, um prolongamento da minha fúria com mais do dobro da minha idade.
E simplesmente descarrego. A minha fúria saí em pequenos relâmpagos, em fugazes uniões do metal com as estacas de madeira. A estaca treme, a marreta treme, eu tremo. Por vezes a terra protesta, queixa-se de tanta violência, que mal me fez ela, atira-me pedaços de lama, mas de pouco lhe serve.
A minha mente, todos os meus sentidos, o meu próprio ser, são engolidos pela força. Ao fim de uns minutos, já nem mesmo a trepidação do embate me incomoda, nem mesmo me vou aperceber dela até ter de parar, e as mãos ainda tremerem. O próprio som do rádio se torna um zumbido apagado, uma abelha numa tarde luminosa de um Verão distante, deixaram-me sozinho com o rádio e o carro que o segura, poderia fugir, voar daqui.
Se me apercebesse disso.
Mas agora não, sou filho da força que liberto, só mesmo quando acabo percebo que estou só, e afegante, e gelado, e a própria luz da manhã me dá um pontapé nos olhos quando patino de volta para o carro.
Penso no que falta fazer e nem me sento. Fico cá fora à espera que me tragam os pobres animais, vou participar no seu sacrifício, tu morres para eu comer, vou recolher a tua vida, líquida e sólida, para alimentar as pessoas que estão provavelmente ainda a dormir.
Já voltam, perguntam-me se está feito, perguntam-me se acabei.
Sim.
E partimos então para casa, para a esperança de calor, para a morte dos seres que estão lá atrás, balindo mansamente, apreciando a viagem.
Domingo de Páscoa, 9.30 da manhã.
Vou a caminho de mais umas duas horas de trabalho, já perdi toda a esperança que seja um sonho, nem mesmo eu tenho sonhos tão estúpidos, nem penso no calor que me aguarda no fim, penso que, apesar da bela merda de manhã que vou ter, não trocava estes momentos por nada deste mundo.
Bom, minto.
Preferia ter ficado a dormir.
Mas olha, pequena fagulha de luz matinal que me corta a cara, isso já não tem remédio.
Tão ridícula que poderia fazer parte de um qualquer postal ilustrado da época pascal.
São oito da manhã, oiço o rádio dizer uns escassos metros das minhas costas, na mesma direcção de onde vem a luz cortante do sol, na mesma direcção de onde nasce esta morrinha, esta estúpida ameaça de chuva cujos passos sonoros nos meus ombros incomodam muito mais do que molham verdadeiramente.
É de certeza um sonho estúpido, um ridículo masoquismo imaginado, estou numa cama antiga, afogado em cobertores, a sonhar que estou à chuva, a sonhar que espero, de costas para o sol, um sinal.
Os segundos passam intermináveis, escorrem para dentro dos minutos como a chuva que finalmente cai decidida a molhar alguém escorre pelos meus ombros gelados, mal aquecidos pelo abraço do oleado verde do meu pai, preferia estar em camisa, mas ou continuo com o oleado vestido ou volto a pé. Antes eu gelar que encharcar os estofos.
A vedação estica, lá de longe vem o sinal.
Subo a marreta bem acima da minha cabeça, é uma ferramenta antiga, que o tempo e a fome de quem a manejava tornaram quase viva, um prolongamento da minha fúria com mais do dobro da minha idade.
E simplesmente descarrego. A minha fúria saí em pequenos relâmpagos, em fugazes uniões do metal com as estacas de madeira. A estaca treme, a marreta treme, eu tremo. Por vezes a terra protesta, queixa-se de tanta violência, que mal me fez ela, atira-me pedaços de lama, mas de pouco lhe serve.
A minha mente, todos os meus sentidos, o meu próprio ser, são engolidos pela força. Ao fim de uns minutos, já nem mesmo a trepidação do embate me incomoda, nem mesmo me vou aperceber dela até ter de parar, e as mãos ainda tremerem. O próprio som do rádio se torna um zumbido apagado, uma abelha numa tarde luminosa de um Verão distante, deixaram-me sozinho com o rádio e o carro que o segura, poderia fugir, voar daqui.
Se me apercebesse disso.
Mas agora não, sou filho da força que liberto, só mesmo quando acabo percebo que estou só, e afegante, e gelado, e a própria luz da manhã me dá um pontapé nos olhos quando patino de volta para o carro.
Penso no que falta fazer e nem me sento. Fico cá fora à espera que me tragam os pobres animais, vou participar no seu sacrifício, tu morres para eu comer, vou recolher a tua vida, líquida e sólida, para alimentar as pessoas que estão provavelmente ainda a dormir.
Já voltam, perguntam-me se está feito, perguntam-me se acabei.
Sim.
E partimos então para casa, para a esperança de calor, para a morte dos seres que estão lá atrás, balindo mansamente, apreciando a viagem.
Domingo de Páscoa, 9.30 da manhã.
Vou a caminho de mais umas duas horas de trabalho, já perdi toda a esperança que seja um sonho, nem mesmo eu tenho sonhos tão estúpidos, nem penso no calor que me aguarda no fim, penso que, apesar da bela merda de manhã que vou ter, não trocava estes momentos por nada deste mundo.
Bom, minto.
Preferia ter ficado a dormir.
Mas olha, pequena fagulha de luz matinal que me corta a cara, isso já não tem remédio.
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