quinta-feira, março 19, 2009

Maltez

Lembro-me de ser pequeno, tão pequeno que nem ao cinto das calças azuis do meu pai chegava, e ir com o meu avô guardar ovelhas, no meio de um calor sufocante, rodeado de animais maiores que eu, com um cajadinho feito de uma cana, o cabelo comprido escondido debaixo de chapéuzinho de palha, daqueles que os miúdos tinham naquela altura.
Caminhavamos todo o dia, distâncias de gigantes pelo que me parecia naquela altura, e víamos maravilhas para as quais uma criança como eu não tinha ainda vocabulário, nem dito nem pensado. E o meu avô chamava-me pequeno maltez, por causa do meu cabelo comprido e pele bronzeada, pequeno cigano, pequeno nómada, palavras ditas com carinho para descrever uma criança, palavras usadas com desdém para descrever adultos, pessoas que viajavam de longe e para longe, sem que se lhes conhecesse a família até à décima geração.
Não que viajar fosse mau.
Um homem viaja porque tem de dar de comer à família, porque vai atrás do trabalho, que o trabalho é bicho irrequieto e foge, foge de nós até quando estamos a dormir.
E assim cresci, entre o dever e a vontade, entre esse pequeno maltez que mais não quer senão ver todo o grande mundo, as suas grandes tristezas e as suas pequenas maravilhas, e o dever mais velho e primeiro de um irmão e filho, ajudar quem não te pede mas que ajudas porque é o teu sangue e o sangue é mesmo assim, não há como dizer não.
Entre acordar cedo para ir trabalhar e não dormir para ver o pôr-do-sol.
Entre entrar no conforto morno da rotina e gelar os ossos a ver as estrelas na serra no inverno.
E o meu coração bate, bate, bate bate, até ao dia em que ir seja mais forte que ficar, e esse pequeno maltez sorridente parta, à procura de ver mais, de encher mais os olhos.
E depois volte.
Ou não, pá, ou não.