segunda-feira, janeiro 16, 2006

Olhos castanhos

Tenho medo de mim naqueles momentos em que os meus olhos ficam cinzentos, como o céu está neste exacto momento.
Não sinto nada, nem o frio, nem o vento, nem a neve branca que navega perdida pelas ruas.
Sinto-me como uma estátua de sal, de dor e saudade, desesperado demais para me sentar num autocarro meio cheio, nesta cidade perdida pintada de cinzento e branco sujo.
Entro na sala de aula e nem tiro a cadeira do sítio.
Parado no estrado, em frente ao meu público habitual, os meus ombros são penedos de granito, a minha boca e os meus olhos são pequenas linhas perdidas no mapa do meu rosto.
Olho-os, suspiro e mergulho de cabeça naquele esquecimento que só o trabalho dá, aquele adormecer da nossa vida que existe para lá desta sala.
E deixo que a pouco e pouco as ondas de cansaço e esquecimento, que vão subindo pelo meu corpo, apaguem tudo o resto.
Excepto o cinzento do céu, excepto o cinzento dos meus olhos.
É já noite escura, é já a morte gelada, misto de frio e de esgotamento, quando saio para a liberdade novamente.
Assim que abro a porta o calor de casa quase que me queima a cara, devo estar morto, mas afinal estou só gelado e cansado. Deixo o rasto de roupa para marcar bem o caminho para o banho que me vai limpar do mundo, desfazer as linhas da cara, fazer-me sonhar com o meu país.
No final pareço outro, limpo, leve, quente.
Mas os meus olhos estão cinzentos.
O céu agora é negro, lá fora chovem as mágoas do mundo, que grita e chora a tempestade.
Aqui dentro há vida, há calor, só os meus olhos estão cinzentos.
Afogo-me um pouco em trabalho e depois vou fazer o jantar, naquela linha diária traçada de pessoa só, de fim de dia de estrangeiro em terras estranhas.
Enquanto como e me apago em frente ao televisor, fingindo que não durmo nesta ilha almofadada a vermelho e branco, chegas tu, pequeno furacão de energia resgatado de um dia de tempestade, com pequenas grinaldas de neve e diamantes de chuva no teu cabelo.
Molhas-me a cara quanto pousas nos meus braços, estás gelada e eu abraço-te, sinto a luz do teu corpo atravessar o meu como se fosse papel de arroz e iluminar toda a sala.
Olhas-me e dizes, numa voz cansada e sumida, empoleirada em lábios gelados como um pássaro doce, "Meu amor, hoje tens os olhos tão castanhos."

8 comentários:

Sophia disse...

Vi praticamente o nascimento da tua escrita e sabes que sou sincera quando digo que a adoro. Quanto aomconteúdo do que escreveste: "Oh, lindo, como te compreendo!!!", apenas os meus olhos continuam "cinzentos". Adorei mesmo. Tem continuação? Fiquei viciada. ME WANTS MORE. MORE! MORE! MORE! PLEASE!!!

M.M. disse...

Quando li o que escreveste sobre os olhos, lembrei-me de uma música dos Jamiroquai em que ele diz algo muito simples, e que acho muito bonito:

"All I want is to see my black eyes turn back to brown".

A. disse...

Que lindo... É tão bom olhar nos olhos da pessoa que amamos e ver que está tudo bem e que a sua alma sorri...
Adorei o poema, como já vem sendo habitual e adorei os "olhos castanhos" que são os meus preferidos... LOL
Beijinhos grandes***

Anónimo disse...

Eu diria algo bonito agora...mas algo não deixa..
Então só digo que está muito bonito o teu escrito!
Grande beijo!

ananda disse...

Como serão esses "olhos castanhos"? Adorei! Beijinhos!

Anónimo disse...

Lindos olhos.
um bj
E.R.

Heavenlight disse...

Cor da alma. Porque quando somos bonitos por dentro e não nos vemos assim, apenas quem nos ama verdadeiramente vê a nossa essência real e pura.
Adorei, como sempre!

Rakeru disse...

simplesmente lindo =)