terça-feira, fevereiro 28, 2006

minh'alma

É ainda de noite quando me levanto, o corpo ainda me pesa no fôfo conforto dos lençóis e da casa aquecida, mas é preciso acordar, é preciso vestir, enfrentar o mundo gelado, pintado de negro, que me quer lá fora tanto quanto eu quero sair.
Lá fora oiço o céu chorar, lavar o mundo com as suas lágrimas, muito deve sofrer o céu, muitas devem ser as saudades que as nuvens têm, para tanto chorarem enquanto correm no seu caminho. Visto-me depressa, tento agarrar ao corpo o calor da cama, o vapor dos sonhos, que nos aquecem as noites.
Sou o último a entrar na cozinha, todos estão de pé, pratos na mão, comem sossegadamente no escuro, o copo de vinho ao alcance da mão, nenhuma palavra corta a madrugada, nenhuma ideia senão aproveitar o calor da comida na escuridão que nos abraça, a pequena figura da minha avó dança, enchendo pratos, cortando carnes, lavando já as coisas, move-se rapidamente entre os homens grandes, de pé na cozinha, uma fagulha de calor e vida no meio de pilares de carne que comem devagar, não vá a comida fugir.
O meu trabalho é simples, sei-o de cor, faço-o de olhos fechados. É o trabalho de quem não tem arte, de quem não vive da terra. Reconhecem-me o mérito, trabalhas muito rapaz, és grande, és forte, mas não tens arte. Ganhas respeito, mas não ganhas palavras, não tens arte nem rugas para isso, não és um dos antigos, é a lei eterna do campo.
Submeto-me à lei, o silêncio é total, nem no carro se fala, só na paragem na tasca, um copo de bagaço para aquecer o dia, trocar novidades conhecidas com quem se viu ainda ontem. Ai sim, ai sou importante, é importante mostrar o novo, o neto, o sobrinho, apresentar o doutor.
É grande e largo de ombros, não parece um doutor. Mas é, é doutor de letras, responde um sorriso, ao sorriso responde o espanto, homens das letras são de outro mundo, têm outra sabedoria, trocaram as mãos duras pelos olhos cansados, as penas dos corpo pelas da mente. Um homem dos dois lados, tem duas dores, será um dos seus que conhece os segredos dos outros, ou um espião? À noite se verá, vamos ver se se aguenta.
Com uma tira de meia luz, já uma promessa de sol aparece no horizonte, atiro o meu corpo ao trabalho, já levo uma hora de carga quando a luz do sol me invade os olhos e me apresenta ao dia. Mas não paro, mesmo sozinho, única voz no raio de quilómetros, só paro o trabalho acabado, a meio da manhã, e começo a andar pela lama para o local de encontro, ladeado de verde e de vida. Os animais seguem-me alguns momentos, mas depois desistem, os sinais que esperam não saem, caminho leva para longe da sua comida, é melhor ficar.
Ao subir o primeiro monte reparo finalmente que é já dia, o céu de chumbo parou de derramar tesouros sobre nós e agora parte, deixa-me aproveitar o sol, secar a roupa no corpo, aquecer-me os braços e ombros doridos.
O dia segue lentamente, o ritmo da planície marca homens e animais, aqui o tempo não passa, escorre lentamente pela paisagem, como mel, parece que escorre do próprio sol, espalha esplendor pela planície de pão e azeite.
Voltar a casa, o dia acabado, o sol já se põe, aqui não se trabalha sem sol, tomar um banho para lavar as dores, mudar de roupa, comer sentado pela primeira vez durante o dia, até o corpo estranha, primeiras conversas do dia, com quem todo o dia falou, parece que estamos noutro mundo, um mundo de barulho, parece que vimos da morte.
Sento-me na cama, dói-me o corpo todo, atiro-me ao sono sedento de descanso, sedento de paz, não mais um corpo, sou apenas um monte de cordas que alguém arrumou nesta cama.
Antes de dormir, lembro-me do sol a entrar nos meus olhos e fico com a certeza, aquela fé inabalável que nasce devagar, sem dar-mos por isso, que não pertenço a este mundo. Os antigos têm razão, das rugas nasce a sabedoria, um homem das letras sou, preso noutras lidas estou.
Mas esta é a minha terra, nunca tive tanta certeza, não é na minha língua que moro, nem nas palavras.
É na solidão da planície, num dia de trabalho chuvoso, que a minha alma reside.
Esta é a minha morada, a planície dos silêncios, sem casas, nem sons, nem palavras, sem um único pensamento fugidio de vãs demandas.
Apenas o chão, o céu, e a minh'alma.

segunda-feira, fevereiro 20, 2006

A cama

Todos os os dias.
Eram todos nossos, era a nossa vida, não vivia sem ti.
Eramos um só ser, até quando estávamos separados, juntava-nos aquela sede do corpo, aquele querer ser um só outra vez.
Agora, passado tanto tempo, estás outra vez na minha cama.
O cenário mudou, até a própria cama não é a mesma, nem nós, mas os velhos gestos voltaram rápidos, como se só o dia nos separasse, como se tivessemos voltado agora a casa e despertado nos braços um do outro.
Enquanto escrevo sinto ainda o teu perfume, não o aquele artificial que apaguei com beijos do teu pescoço, mas sim aquela leve recordação do cheiro a maçâs que o champô deixou no teu cabelo, e aquele sentir quente que o peso subtil do teu corpo marcou no meu.
Olho a cama de relance, dormes sorridente, anichada no meio, a cama deve estar tão quente como a noite está fria.
E a noite está fria, começo a aperceber-me, ela lava-me do teu calor, da tua presença, acorda-me deste sonho.
Se aomenos não fosse a minha casa, podia ir-me embora enquanto dormias, deixar-te aí quente, irreal, uma noite de regresso ao futuro que um dia tivemos, que um dia sonhámos, nada mais, nada menos.
Tenho vontade de meter as minhas mãos nos teus olhos castanhos para limpar todo o lodo que te afoga a alma, encontrar um resto do que foste, talvez encontrar-me ai também, afogado, perdido ainda nos teus olhos.
Ilusões.
Vais acordar e nem me vais olhar. Vais dizer que tudo foi um erro, vais deitar umas lágrimas meio sentidas, meio por que sim, vais-te vestir e vais voltar à tua vida, vais sair outra vez da minha, pensando talvez que outro dia voltes.
A noite está mesmo fria, volto para a cama, estremeces e abraças-me quando entro de novo nos lençois, o sorriso está mesmo lá, precisavas de o encontrar, foi essa a razão de tudo isto.
Tinhas-te perdido, a mulher que realmente és, e precisavas voltar para um sítio seguro, um sítio feliz, que o teu sorriso conhecesse bem. A nossa cama.
Mas esta não é a nossa cama, é minha.
Não moras aqui, nesta cama, espero sinceramente que nunca mais percas o teu sorriso, que nunca mais te percas, esta cama é minha e este coração é meu, e foi a última noite em que os ocupaste.
Como eu desejei, até à pouco tempo, ter-te de novo aqui. Mas a nossa cama foi e veio, o nosso futuro nunca vai acontecer, até podiamos querer, mas saberiamos sempre que era mentira.
Por isso agora vou dormir, bem agarradinho a ti, e acordar feliz.
Porque já me despedi.




terça-feira, fevereiro 14, 2006

S. Valentim

Fui um abraço quando precisaste,
fui um corpo onde te afogaste,
fui um coração a bater compassado
com o teu sonho magoado.

Envolvi-te nos meus abraços
e nem o mundo, nem a luz,
nem as recordações do céu
passaram pelos teus olhos.

Fui o teu mundo quando pediste,
fui o chão dos teus passos,
parti o meu trono e a minha coroa
para te fazer sorrir de novo.

Mas nunca vou ser para ti
a salvação colorida e doce
que a tua voz é para mim
todos os dias deste mundo.

sexta-feira, fevereiro 03, 2006

Êxtase

O meu coração dispara quando a tua mão toca no meu peito e aperta.
Não é paixão, nem amor, apenas o querer provar os teus lábios, o teu corpo.
O desejo é animal, já não sou humano, sou apenas vontade, sou apenas querer.
Mordes-me o ombro, agarras-me os pulsos, voas nos meus braços, somos apenas vapor,
somos apenas calor.
Sigo as tuas linhas com a ponta dos meus dedos, escrevo na minha memória
a forma do teu corpo.
São dos corpos celestes que voam, são dois sóis, são dois cometas errantes que chocam
e se despedaçam um no outro.
Não há magia, não há amor, apenar sede, apenas vontade, apenas agora.
E finalmente o momento acaba, finalmente respiro de novo.
Respiro finalmente, apenas te respiro a ti, apenas respiro o teu perfume, o teu suor, o teu calor.
Tenho de voltar a casa, sair daqui, sentir o frio da noite na cara.
Mas a tua mão viaja no meu corpo, perdida de novo, de novo no meu coração.
E tudo recomeça.