É ainda de noite quando me levanto, o corpo ainda me pesa no fôfo conforto dos lençóis e da casa aquecida, mas é preciso acordar, é preciso vestir, enfrentar o mundo gelado, pintado de negro, que me quer lá fora tanto quanto eu quero sair.
Lá fora oiço o céu chorar, lavar o mundo com as suas lágrimas, muito deve sofrer o céu, muitas devem ser as saudades que as nuvens têm, para tanto chorarem enquanto correm no seu caminho. Visto-me depressa, tento agarrar ao corpo o calor da cama, o vapor dos sonhos, que nos aquecem as noites.
Sou o último a entrar na cozinha, todos estão de pé, pratos na mão, comem sossegadamente no escuro, o copo de vinho ao alcance da mão, nenhuma palavra corta a madrugada, nenhuma ideia senão aproveitar o calor da comida na escuridão que nos abraça, a pequena figura da minha avó dança, enchendo pratos, cortando carnes, lavando já as coisas, move-se rapidamente entre os homens grandes, de pé na cozinha, uma fagulha de calor e vida no meio de pilares de carne que comem devagar, não vá a comida fugir.
O meu trabalho é simples, sei-o de cor, faço-o de olhos fechados. É o trabalho de quem não tem arte, de quem não vive da terra. Reconhecem-me o mérito, trabalhas muito rapaz, és grande, és forte, mas não tens arte. Ganhas respeito, mas não ganhas palavras, não tens arte nem rugas para isso, não és um dos antigos, é a lei eterna do campo.
Submeto-me à lei, o silêncio é total, nem no carro se fala, só na paragem na tasca, um copo de bagaço para aquecer o dia, trocar novidades conhecidas com quem se viu ainda ontem. Ai sim, ai sou importante, é importante mostrar o novo, o neto, o sobrinho, apresentar o doutor.
É grande e largo de ombros, não parece um doutor. Mas é, é doutor de letras, responde um sorriso, ao sorriso responde o espanto, homens das letras são de outro mundo, têm outra sabedoria, trocaram as mãos duras pelos olhos cansados, as penas dos corpo pelas da mente. Um homem dos dois lados, tem duas dores, será um dos seus que conhece os segredos dos outros, ou um espião? À noite se verá, vamos ver se se aguenta.
Com uma tira de meia luz, já uma promessa de sol aparece no horizonte, atiro o meu corpo ao trabalho, já levo uma hora de carga quando a luz do sol me invade os olhos e me apresenta ao dia. Mas não paro, mesmo sozinho, única voz no raio de quilómetros, só paro o trabalho acabado, a meio da manhã, e começo a andar pela lama para o local de encontro, ladeado de verde e de vida. Os animais seguem-me alguns momentos, mas depois desistem, os sinais que esperam não saem, caminho leva para longe da sua comida, é melhor ficar.
Ao subir o primeiro monte reparo finalmente que é já dia, o céu de chumbo parou de derramar tesouros sobre nós e agora parte, deixa-me aproveitar o sol, secar a roupa no corpo, aquecer-me os braços e ombros doridos.
O dia segue lentamente, o ritmo da planície marca homens e animais, aqui o tempo não passa, escorre lentamente pela paisagem, como mel, parece que escorre do próprio sol, espalha esplendor pela planície de pão e azeite.
Voltar a casa, o dia acabado, o sol já se põe, aqui não se trabalha sem sol, tomar um banho para lavar as dores, mudar de roupa, comer sentado pela primeira vez durante o dia, até o corpo estranha, primeiras conversas do dia, com quem todo o dia falou, parece que estamos noutro mundo, um mundo de barulho, parece que vimos da morte.
Sento-me na cama, dói-me o corpo todo, atiro-me ao sono sedento de descanso, sedento de paz, não mais um corpo, sou apenas um monte de cordas que alguém arrumou nesta cama.
Antes de dormir, lembro-me do sol a entrar nos meus olhos e fico com a certeza, aquela fé inabalável que nasce devagar, sem dar-mos por isso, que não pertenço a este mundo. Os antigos têm razão, das rugas nasce a sabedoria, um homem das letras sou, preso noutras lidas estou.
Mas esta é a minha terra, nunca tive tanta certeza, não é na minha língua que moro, nem nas palavras.
É na solidão da planície, num dia de trabalho chuvoso, que a minha alma reside.
Esta é a minha morada, a planície dos silêncios, sem casas, nem sons, nem palavras, sem um único pensamento fugidio de vãs demandas.
Apenas o chão, o céu, e a minh'alma.
Lá fora oiço o céu chorar, lavar o mundo com as suas lágrimas, muito deve sofrer o céu, muitas devem ser as saudades que as nuvens têm, para tanto chorarem enquanto correm no seu caminho. Visto-me depressa, tento agarrar ao corpo o calor da cama, o vapor dos sonhos, que nos aquecem as noites.
Sou o último a entrar na cozinha, todos estão de pé, pratos na mão, comem sossegadamente no escuro, o copo de vinho ao alcance da mão, nenhuma palavra corta a madrugada, nenhuma ideia senão aproveitar o calor da comida na escuridão que nos abraça, a pequena figura da minha avó dança, enchendo pratos, cortando carnes, lavando já as coisas, move-se rapidamente entre os homens grandes, de pé na cozinha, uma fagulha de calor e vida no meio de pilares de carne que comem devagar, não vá a comida fugir.
O meu trabalho é simples, sei-o de cor, faço-o de olhos fechados. É o trabalho de quem não tem arte, de quem não vive da terra. Reconhecem-me o mérito, trabalhas muito rapaz, és grande, és forte, mas não tens arte. Ganhas respeito, mas não ganhas palavras, não tens arte nem rugas para isso, não és um dos antigos, é a lei eterna do campo.
Submeto-me à lei, o silêncio é total, nem no carro se fala, só na paragem na tasca, um copo de bagaço para aquecer o dia, trocar novidades conhecidas com quem se viu ainda ontem. Ai sim, ai sou importante, é importante mostrar o novo, o neto, o sobrinho, apresentar o doutor.
É grande e largo de ombros, não parece um doutor. Mas é, é doutor de letras, responde um sorriso, ao sorriso responde o espanto, homens das letras são de outro mundo, têm outra sabedoria, trocaram as mãos duras pelos olhos cansados, as penas dos corpo pelas da mente. Um homem dos dois lados, tem duas dores, será um dos seus que conhece os segredos dos outros, ou um espião? À noite se verá, vamos ver se se aguenta.
Com uma tira de meia luz, já uma promessa de sol aparece no horizonte, atiro o meu corpo ao trabalho, já levo uma hora de carga quando a luz do sol me invade os olhos e me apresenta ao dia. Mas não paro, mesmo sozinho, única voz no raio de quilómetros, só paro o trabalho acabado, a meio da manhã, e começo a andar pela lama para o local de encontro, ladeado de verde e de vida. Os animais seguem-me alguns momentos, mas depois desistem, os sinais que esperam não saem, caminho leva para longe da sua comida, é melhor ficar.
Ao subir o primeiro monte reparo finalmente que é já dia, o céu de chumbo parou de derramar tesouros sobre nós e agora parte, deixa-me aproveitar o sol, secar a roupa no corpo, aquecer-me os braços e ombros doridos.
O dia segue lentamente, o ritmo da planície marca homens e animais, aqui o tempo não passa, escorre lentamente pela paisagem, como mel, parece que escorre do próprio sol, espalha esplendor pela planície de pão e azeite.
Voltar a casa, o dia acabado, o sol já se põe, aqui não se trabalha sem sol, tomar um banho para lavar as dores, mudar de roupa, comer sentado pela primeira vez durante o dia, até o corpo estranha, primeiras conversas do dia, com quem todo o dia falou, parece que estamos noutro mundo, um mundo de barulho, parece que vimos da morte.
Sento-me na cama, dói-me o corpo todo, atiro-me ao sono sedento de descanso, sedento de paz, não mais um corpo, sou apenas um monte de cordas que alguém arrumou nesta cama.
Antes de dormir, lembro-me do sol a entrar nos meus olhos e fico com a certeza, aquela fé inabalável que nasce devagar, sem dar-mos por isso, que não pertenço a este mundo. Os antigos têm razão, das rugas nasce a sabedoria, um homem das letras sou, preso noutras lidas estou.
Mas esta é a minha terra, nunca tive tanta certeza, não é na minha língua que moro, nem nas palavras.
É na solidão da planície, num dia de trabalho chuvoso, que a minha alma reside.
Esta é a minha morada, a planície dos silêncios, sem casas, nem sons, nem palavras, sem um único pensamento fugidio de vãs demandas.
Apenas o chão, o céu, e a minh'alma.