quinta-feira, março 30, 2006

Tarde na casa de chá

Está sol e chove.
Ambas as naturezas que sou, misturadas numa só substância, num só caminho descendente dos céus. O mundo sorri, sorri ao sol que o abraça, e à chuva que o beija, ou se calhar sou só eu que assim o vejo, só eu que assim o percebo.
Deve ser de estarmos os dois aqui, a trocar momentos.
A casa de chá está vazia, à nossa volta apenas cadeiras solitárias esperando ansiosamente quem as ocupe, e o vapor que sobe das taças de chá envolve-nos os sentidos, fotografa para nós os raios de sol filtrados pela chuva, esses raios que nem os vidros param, que nos aquecem, como o chá.
O teu cabelo está molhado, o teu sorriso também, mas a tua voz canta, será este o som da alegria, será esta a voz que se ouve quando se está assim, em paz?
Não sei.
Só sei que o tempo está parado, aqui, neste momento luminoso, enquanto o vapor adocicado do chá sustém carinhosamente as nossas palavras e o leve cheiro a doce de amoras se mistura com as palavras que me cantas.
Uma tarde a ouvir-te cantar palavras, separados por um mar de madeira navegado por um bule de chá, onde agora já só algumas migalhas relembram os bolos que fizemos naufragar.
Vivo, estou vivo outra vez.

sexta-feira, março 24, 2006

Pintura de mim

destruíste-me
todas as máscaras
todos os muros que fiz

agarraste-me o braço nu
acariciaste a minha pele
e cantaste baixinho
só para mim

existes mas não és tu
és esta imagem pintada
és tu como ninguém vê
mas não, nunca és tu

beijei-te para te calar
mas ainda disseste
o que está aqui não és tu
é só uma pintura

uma pintura de ti

segunda-feira, março 20, 2006

trovoada

O céu é um borrão de tinta negra, um cobertor abafado que se arrasta lentamente sobre a cidade, sobre o peito das pessoas, tapa até a luz, até mesmo a luz se altera.
A trovoada arrasta-se preguiçosa, ela não tem pressa, altera o mundo à sua passagem, todos se escondem, todos parecem querer fugir-lhe, a cidade a meus pés esvazia-se lentamente.
É aquele medo gravado bem fundo nas nossas recordações, aquele medo muito humano que temos de tudo o que não controlamos, aquele medo que temos também das tempestades no mar e dos fogos na floresta. Um medo fundo, genético, comum.
Pois eu adoro esse medo, talvez tanto quanto adoro a trovoada.
Neste terceiro direito anónimo, apenas mais uma varanda escondida à vista de todos, tenho a vista desimpedida sobre a cidade, vejo-a fugir, esconder-se, e em alguns minutos as ruas estão vazias, cada num está em sua casa, protegido da promessa de chuva, escondido do medo.
Apenas eu oiço este silêncio, este vento sufocante, frio e abafado, que lambe a cidade antes do primeiro raio.
Mas antes o trovão. Sempre o trovão antes.
Ao ouvir o primeiro trovão o meu coração salta, todos saltam, porque não o meu também, mas o meu não salta só de medo, salta porque quer sair, ver os rasgões de branco eléctrico que rasgam o negro cobertor celeste.
A minha alma rasga-me desesperada o interior, também ela quer sair, mas a ela não posso deixar sair, se ela sai já não volta. Junta-se a este infinito chão de nuvens negras, vai-se derramar pela cidade, com a chuva que já promete cair a qualquer momento.
Olho o céu como uma criança, a minha prenda, a minha prenda está aqui, derrama medo, escuridão, lava a cidade, esvazia-a só para eu a olhar, só para eu a tempestade ficarmos os dois, sozinhos, apaixonados nesta varanda.
Estou feliz. Verdadeiramente feliz.

terça-feira, março 14, 2006

Momento

Arrasto-me lentamente até à cama, a toalha branca envolve-me pela cintura, corte branco numa tela morena. A dor está lá, viva, a morder-me o joelho, a agarrar-me e a arrastar-me para a cama.
Deixo-me cair, fico a respirar pesadamente, como se o ar que saí de mim às golfadas conseguisse arrancar a dor para fora, como se me fosse obrigar a vomitá-la, o corpo molhado espalmado contra os lençóis, como se se tivessem esquecido de me erguer crucificado.
Tento concentrar-me na névoa açucarada de incenso e laranjas que se derrama pelo quarto, que se espalha das velas do teu tocador, o espelho a reflectir a vida das pequenas chamas pela luz cancerosa da tarde quente, vens sentar-te ao meu lado e o cheiro a fresco do teu cabelo acompanha as gotas mornas que me deixas cair nas costas.
A dor começa a subir-me pela perna como uma serpente escamosa e gelada, mesmo na tarde quente sinto a perna a gelar. As gotas que escorrem do meu cabelo passeiam-se pela minha cara, convidam as gotas mal presas aos meus olhos para as acompanharem.
Tocas-me nas costas e obrigas-me a virar, sem fazeres força, sem dizeres nada, obrigas-me a virar para ver os teus olhos, para me matar neles.
Deixas a minha cabeça fazer ninho no teu colo, será a rádio que me canta ou será que apenas acompanha a canção que escorre lentamente dos teus lábios, da tua boca, já não sei, apenas oiço a canção da dor, e a tua, qual delas a mais pura.
A tua mão direita tapa-me os olhos, penteia-me os cabelos, os teus dedos estão nos meus lábios, fizeram lá morada, tentam puxar a dor de dentro de mim.
A outra mão percorre o meu tronco, não me toca realmente, apenas desenhas as minhas cicatrizes com a promessa do teu toque, deixas-me quase adivinhar que me tocas, é como se estivesses a fazer um rascunho para guardar na memória.
Cantas baixinho, quase adivinho o teu sorriso através dos meus olhos fechados.
E assim adormeço, lavado do mundo, a doer-me no teu colo, crucificado nos teus dedos, onde a dor existe mas não importa, nem mesmo um pouco, nem mesmo nada.

quinta-feira, março 09, 2006

entre nós

Entre nós não existem palavras,
existem apenas pequenos passeios
que as nossas mãos fazem pelo corpo.

Corpo só temos um, nem teu nem meu.
Nosso, como esta noite, como este suor,
como o amanhã que desponta já nos teus olhos.

Estremecemos juntos, formamos aqui
as ondas de um mar só nosso, apagamos
este espaço vazio que se forma entre nós.

E com gesto conhecidos pintamos mundos,
criamos estrelas, destruimos universos,
e segredamos os passos da nossa viagem
um ao outro, para que nada caminhe entre nós.