sábado, outubro 01, 2005

Amor em Prosa III

Só tu sabes o que enfrentas.
Acordas ao meu lado nos dias bons e adormecemos nos braços um do outro nos dias maus.
Mas eu sei o peso que carregas.
Só a mim a tua força não espanta.

Fazia vento nessa tarde, trazias o cabelo preso, e mas algumas madeixas soltas cortavam-te o rosto, como barras de uma prisão para os teus olhos.
Viste logo na minha cara o parecida que estavas com ela.
Soltaste os cabelos e olhaste-me nos olhos como que dizendo, eu sou eu, não sou ela.
Percebi.
Sentaste-te do outro lado da mesa, falando a todos com aquela voz de menina que sabes que me irrita, provavelmente ainda magoada por eu te ter achado parecida.
A conversa continuou por algumas horas até que, sem que ninguém se apercebesse, ou talvez tivessem percebido muito bem mas não quisessem mostrar, me mandas-te o olhar.
Já me enviaram esse olhar vezes suficientes para o reconhecer imediatamente.
O olhar "temos de falar".
Pedi logo uma bebida forte num copo grande, sem gelo, ajuda-me a pensar enquanto bebo, e a primeira coisa que pensei foi que asneira teria eu feito.
Às vezes sou mesmo cego.
O tempo passou e fomos ficando.

Era aquela hora, mesmo antes de jantar, em que os cafés ficam vazios e até os empregados desaparecem. Já estavamos sozinhos, mudos, a olhar o cinzeiro à cinco minutos e matei o resto da bebida de uma vez, para afogar o silêncio.
Disse logo, Então?
Hesitaste, talvez a pensar se o plano resultaria agora que o tinhas de pôr em prática. Mas tu és forte, e avançaste.
Eu não sou ela.
Eu sei, nunca disse que eras, e...
Cala-te.
A minha cara endureceu logo, sempre odiei que me mandassem calar, mas vi que tinhas ficado um pouco arrependida e resolvi poupar-te um pouco e soltar um meio sorriso.
Ainda pensas nela?
Sempre.
Baixaste os olhos, como se te pesasse cada palavra.
Ainda a amas?
Sim, respondi eu, depois de dois meses a dizer a mim próprio que não.
E nós?
Nós o quê?
Como ficamos?
Como quiseres.

O vento tinha parado, e as ruas estavam vazias, pairávamos entre o dia e a noite, naquele espaço de tempo em que a luz parece ser azulada. O silêncio entre nós era como se fosse uma almofada que crescia a cada segundo. Eu tinha feito o que devia. Tinha sido um idiota, facilitado tudo. A decisão era tua, ias decidir bem, ias mandar-me passear. Mínimo de sofrimento a longo prazo para os dois. A decisão correcta.

Eu quero.
A tua voz saiu devagar, cada sílaba uma certeza, uma pedra, uma torre, uma montanha.
Ouviste?
Ouviste?

Mas eu não ouvia, só via a tua mão pequena brincando com a chávena do café. Agarrei-a devagarinho, estava gelada e ficava mesmo pequena na minha, olhei-te e nada disse.

Vamos para casa?
A tua voz saiu meio rouca, como se no último momento hesitasses, talvez tivesses percebido mal, talvez eu estivesse a dizer adeus, a mandar-te embora.

Vamos.
A minha resposta ficou a pairar no ar como uma pena, como se o seu verdadeiro significado não fosse real, como se se tivesse perdido no momento. Levantámo-nos, a tua cara estava séria, como se a resposta não fosse o que estavas à espera, como se não soubesses o que fazer agora.

Só a meio caminho de casa me deste a mão, e nessa noite fui dormir em minha casa. Estava bem claro, tu não eras ela, mas também não eras a outra. Não vou mentir, sempre a vou amar. Ela fez parte de mim demasiado tempo para a apagar.
Sempre foste forte, lutas todos os dias por nós.
Quero que saibas...
Não...
Preciso que saibas que todas as noites quando me deito, e todas as manhãs quando acordo, o faço ao teu lado, que não estás em segundo lugar.
Podes posar esse peso que carregas.
Não quero acordar ao lado de mais ninguém.

3 comentários:

Sophia disse...

Pois, está realmente nota 20, so lamento fazer-me recordar certas coisas menos felizes... Mas realmente fiquei muito surpreendida pela beleza do texto e por nunca ter lido nada assim da tua parte. Aconselho-te vivamente a fazeres o seguimento e escreveres um livro. Está lindíssimo!!! Parabéns!!! Nem sei mais que dizer... as palavras tornam-se escassas para me expressar.

Heavenlight disse...

Concordo com a Shootin': está nota 20, sobretudo porque está muito real.
Sabes? é muito difícil para qualquer pessoa ser parecida com a "OUTRA" ou o "OUTRO", e saber que amam a alguém que carrega no peito um outro amor. Sei-o porque eu já fui aquela que olhava para o homem ao lado de quem acordava todos os dias e pensava: ele sonhou com ela. Eu estarei sempre em segundo lugar. Fiz as mesmas perguntas que a personagem do teu texto, num outro café, num outro tempo. E obtive as mesmas respostas. Também já fui eu a dar essas respostas ao único homem que me amou intensa e verdadeiramente, e tinha toda a consciência de que o estava a magoar, pois já o sentira na pele.
Somos fortes para magoar, mas somos muito fracos ao fazê-lo. Somos ainda mais fortes ao enfrentar essa mágoa, mas enganamo-nos a nós próprios.
O teu texto fez-me sentir tudo isto. E tive mesmo que o escrever, embora saiba que este comentário está enorme. Tens o dom de, com a tua escrita, despertar memórias, sentimentos adormecidos, e esse dom é inato somente nos verdadeiros escritores - os que escrevem a partir do seu coração e da sua alma.
PARABÉNS!

maresia disse...

O melhor ABOUT ME que já li!

Quem sou eu? Isso já o Hamlet se perguntava, e já na altura era uma pergunta idiota.