sábado, dezembro 29, 2007

marca

Só falo nisto porque é uma situação que não me deixam esquecer, como se fosse um sinal marcante da pessoa que sou, uma história que me descrevesse totalmente, aquela história que os meus amigos usam como alfinete para as ilusões alheias sobre a minha pessoa.
Acho impressionante que até pessoas que na altura me conheciam mal, para quem eu era aquela sombra de fogo que fui nos últimos tempos de vida do meu coração, saibam essa história tão bem ou melhor que eu, que lá estava... bom, estava e não estava, mas a isso lá chegaremos, o que interessa é que a sabem com pormenores que a mim me escapam, muitas vezes embelezados, como se de um mito se tratasse, uma qualquer batalha mitológica entre seres inumanos, cujo poder escapa à compreensão humana.
Lamento desiludir, mas tudo foi humano, tudo foi tão estupidamente humano, duas palavras teriam evitado essa marca, assim como meses de olhares murmurados e de vozes apagadas pelo chão. de conversas paradas a meio.
Por vezes uma pessoa bebe demais e não se lembra logo do que fez, a recordação demora a vir à tona, mas acaba por vir, puxada pela luz e puxando o remorso, mas este não é o caso, não me lembro mesmo.
Não me lembro.
Sei que falava com a Dulce, falava sobre a Ana, era sempre a mesma merda da mesma conversa, sempre a dificuldade em compreender de quem se encontra no meio, de quem quer o equilíbrio de volta ao seu mundo perfeito, ao seu grupo do café. E eu, a habitual estátua, já tinha metido o queixo para a frente, já ela desistia, já todos dançavam na sala ao lado, quando aconteceu, e o Mauro foi tentar parar.
Vamos ser bem claros. Não me podia importar menos a dor alheia, mas fui lá buscar o Mauro. Nem mais nem menos.
Alguma coisa partiu em cima de mim.
Ouvi gritar, só dias depois soube que tinha sido a Dulce, ficou assustada, nunca me tinha visto cair, tentei levantar-me, e senti-me dormente, um pé na cabeça tirou-me logo essa ideia estúpida da cabeça, tentei levantar-me outra vez e vi os olhos em mim, e não percebi.
Juro que não percebi.
Vi a mancha vermelha escorreu sobre o meu peito, demorei uns bons três, quatro segundos a perceber de onde vinha, vinha de mim, e de repente partiu.
Qualquer coisa em mim partiu.
Chamem-lhe o que quiserem, não me lembro e pronto.
Sei o que fiz porque me contaram.
E não fiquei propriamente orgulhoso, a vergonha e o alívio tomaram conta de mim, em partes irmãs e iguais, como se caminhassem de mão dada, nos dias seguintes senti que de dentro de mim tinham vertido todas as dores, que nesse momento de dor tinha purgado, como se de uma sangria medieval se tratasse, todos os males que em mim escorriam, que tinham vertido por essa ferida.
O que me lembro bem foi do medo que vi quando voltei a mim, o medo que vi naqueles olhos que me rodearam, medo por mim e não de mim, medo do que fui nesses instantes.
Medo que o mal que fui ali apagasse o Vitor que me tinha tornado.
Não sei sinceramente o que fiz.
Sei que tudo o que me contaram me parece exagerado, como se me tivesse dito que tinha voado, que de mim tinha saído uma luz e pago todas as despesas.
Sei que destrui, magoei, a mim e aos outros.
Preferia não ter essa marca.

terça-feira, dezembro 04, 2007

Faz assim...

Hoje uma colega de trabalho, conhecedora do monstro que fui, testemunha das florestas de braços erguidos que queimei, transpôs os poucos metros que nos separam e disse-me, numa voz envergonhada e meio sumida, como se a pessoa que realmente é a quisesse impedir de dizer as palavras que da sua boca partiam para o mundo.
Vitor, ensina-me a destruir uma pessoa.
Aparentemente, a surpresa no meu rosto trouxe consigo uma máscara de dúvida, um simulacro de sorriso a tentar levar o pesado silêncio do demasiado cedo para pensar em seja o que for, e tentei aprofundar a questão, não fosse mais uma idiotice cor-de-rosa, mais uma perda de tempo enjoativa e açucarada, das que formam os rochedos das horas de almoço partilhadas com as colegas, rochedos que é preciso navegar cuidadosamente para se sair, depressa e bem, sem um arranhão.
A questão era, aparentemente, tão séria quanto uma questão do coração poderia ser, ou seja, completamente e quase nada, mas a meio da explicação, que poderia ter sido resumida nas frases que tudo do amor resumem, eu quero e não tenho, há quem tenha e quero tirar, preciso e não sei como apanhar, pensei para comigo.
Espera.
Repete lá.
Vitor, ensina-me a destruir uma pessoa.
O choque do punhal atravessou-me a coluna, como só um punhal de fonemas construido é capaz, e quedou-se pendurado, dançando como uma nuvem no céu, entre a minha mente e o meu espanto, aterrando na minha raiva e furando a revolta.
Porquê eu?
Porque que raios me pedes isso.
A resposta veio célere, a seta seguiu o punhal, e as lembranças doeram mais como qualquer outra avalanche, merda das avalanches, são sempre assim, enleou-me as ideias, uns pontapés pelos dentes, e o já famoso olhar pensas que me enganas mas eu estava lá e vi as cinzas dos fogos, cheirei a destruição no vento da tua voz, esse olhar conheço eu muito bem e calei-me, quem tem razão tem razão, mesmo quando é uma razão do passado.
E é isso que queres?
Não, não é isso.

Quero ganhar.
Claro que queres, quem não quer, bom, para ser sincero talvez não queira porque sei o que fica do outro lado da montanha que criamos no nosso interior, mas sei que tu vais perder algumas noites a pensar, a soltar o arrependimento pelos caminhos do talvez, a tentar ver se existiriam outros meios para atingir o fim que contigo se deita e que tão bem ganhaste.
Mas olha, fofa, que se lixe, quando é que eu medi as consequências dos meus actos?
Faz assim...