quinta-feira, outubro 27, 2005

Sim, sei.

Sim, sei.
Sei que para onde fôr
nunca estarei só.
Porque te carrego,
recordada num altar,
feito dentro de mim.

Sim, sei.
Alías, tenho a certeza,
que já não me perco
outra vez neste caminho,
que escreveste para mim,
quando vivias para nós.

quinta-feira, outubro 20, 2005

Raio de luz

Todos os meus erros morrem
naquele milísegundo em que
os nossos lábios se cruzam,
em que a chuva fria cai
pelas goteiras dos cabelos,
e um raio de luz viva
nos atravessa agarrados,
neste estacionamento sujo
e escuro e feio e nosso.

Não me peças mais perdão,
eu não te peço mais desculpa.

Vamos só ficar aqui assim,
agarrados na noite sem lua,
enquanto eu desvendo se
este arrepio nas costas
é da chuva que me encharca,
das tuas mãos que me abraçam
ou deste raio de luz suja
que nos transporta assim,
naufragados um no outro,
neste milionésimo de segundo
onde a memória não existe.

sexta-feira, outubro 14, 2005

Nunca vai cessar de me espantar
que as pessoas me vejam como
uma pessoa sensível e boa.

Talvez tu lhes devesses contar
sobre a noite em que te olhei nos olhos,
te arranquei o coração do peito e sorri.

Ou talvez devesses contar o que disse:
"Tu para mim morreste, és menos que nada,
não me fales, não me olhes, nem digas o meu nome."

Deixa.
Basta-lhes saber o bem que me soube
fazer sofrer a mulher que amei.

quarta-feira, outubro 12, 2005

Vivo


Chove torrencialmente e nem me importo.
Só sei que me sinto vivo, neste exacto momento,
da madrugada pintada de cinzento sepultura.

Caminho de braços abertos e cara levantada,
deixando a chuva gelada escorrer pelo pescoço
e inundar-me de vida a alma ressequida.

Na luz matinal, a chuva parece chumbo derretido,
e eu riu alto demais nas ruas desertas cheias de lama,
porque a chuva chegou para me lavar os olhos.

O vento brinca com o meu cabelo encharcado,
e sinto, e espero, e desejo que me agarre as mãos
e me leva a passear no meio das nuvens negras.

segunda-feira, outubro 10, 2005

as primeiras chuvas

vieste com as primeiras chuvas
à minha procura nos bares
por saberes que me tinhas
deixado partido e perdido
no fundo de uma garrafa

vieste na busca estúpida
da recordação esquecida
do nosso amor passado
porque não tinhas já
quem te abraçasse

vieste nos meus braços
numa nuvem quente
de álcool e prazer
e choraste saciada
perdida no meu peito

mas depois veio o sol
e quando a luz chegou
lá te lembraste que
agora já não me amavas
e sumiste na manhã

e lá me arrastei eu
nem melhor nem pior
para o fundo da garrafa
até que voltem a cair
as primeiras chuvas

intimidade

resolvi contar a todos o bela que és
quando ficas assim meia acordada
nos meus braços
com o pijama de flanela azul
que a tua mãe te deu nas férias
e me deixas o braço dormente
com essa tua mania
de te esconderes da luz
aninhando-te no meu ombro
e me acordas com o perfume
dos teus cabelos soltos
e com o calor da tua respiração
a arrepiar-me o meu pescoço

o lobo

antes quebrar que dobrar
diziam-me os meus avós
quando eu era pequeno

quando entrei na escola
a professora batia-me
e eu não lhe dava razão

depois cresci e aprendi
a responder mordendo
à ignorância dos outros

muitas vezes quebrei
por erros meus
ou abandono dos outros

mas ainda guardo o orgulho
de mesmo quando a carneirada
foge, nunca ter dobrado

sexta-feira, outubro 07, 2005

o voto

não temos revoluções, temos cento e vinte canais
não temos cartas, temos mensagens em códigos
não temos torturas, temos grandes camadas
não temos censura, mas não dizemos nada
não me importa onde votam
não têm nada a ver onde eu voto
MAS VÃO VOTAR
PESSOAS MORRERAM PARA VOÇÊS O PODEREM FAZER
FAÇAM-NO
VOTEM
VOTEM
VOTEM

sábado, outubro 01, 2005

Amor em Prosa III

Só tu sabes o que enfrentas.
Acordas ao meu lado nos dias bons e adormecemos nos braços um do outro nos dias maus.
Mas eu sei o peso que carregas.
Só a mim a tua força não espanta.

Fazia vento nessa tarde, trazias o cabelo preso, e mas algumas madeixas soltas cortavam-te o rosto, como barras de uma prisão para os teus olhos.
Viste logo na minha cara o parecida que estavas com ela.
Soltaste os cabelos e olhaste-me nos olhos como que dizendo, eu sou eu, não sou ela.
Percebi.
Sentaste-te do outro lado da mesa, falando a todos com aquela voz de menina que sabes que me irrita, provavelmente ainda magoada por eu te ter achado parecida.
A conversa continuou por algumas horas até que, sem que ninguém se apercebesse, ou talvez tivessem percebido muito bem mas não quisessem mostrar, me mandas-te o olhar.
Já me enviaram esse olhar vezes suficientes para o reconhecer imediatamente.
O olhar "temos de falar".
Pedi logo uma bebida forte num copo grande, sem gelo, ajuda-me a pensar enquanto bebo, e a primeira coisa que pensei foi que asneira teria eu feito.
Às vezes sou mesmo cego.
O tempo passou e fomos ficando.

Era aquela hora, mesmo antes de jantar, em que os cafés ficam vazios e até os empregados desaparecem. Já estavamos sozinhos, mudos, a olhar o cinzeiro à cinco minutos e matei o resto da bebida de uma vez, para afogar o silêncio.
Disse logo, Então?
Hesitaste, talvez a pensar se o plano resultaria agora que o tinhas de pôr em prática. Mas tu és forte, e avançaste.
Eu não sou ela.
Eu sei, nunca disse que eras, e...
Cala-te.
A minha cara endureceu logo, sempre odiei que me mandassem calar, mas vi que tinhas ficado um pouco arrependida e resolvi poupar-te um pouco e soltar um meio sorriso.
Ainda pensas nela?
Sempre.
Baixaste os olhos, como se te pesasse cada palavra.
Ainda a amas?
Sim, respondi eu, depois de dois meses a dizer a mim próprio que não.
E nós?
Nós o quê?
Como ficamos?
Como quiseres.

O vento tinha parado, e as ruas estavam vazias, pairávamos entre o dia e a noite, naquele espaço de tempo em que a luz parece ser azulada. O silêncio entre nós era como se fosse uma almofada que crescia a cada segundo. Eu tinha feito o que devia. Tinha sido um idiota, facilitado tudo. A decisão era tua, ias decidir bem, ias mandar-me passear. Mínimo de sofrimento a longo prazo para os dois. A decisão correcta.

Eu quero.
A tua voz saiu devagar, cada sílaba uma certeza, uma pedra, uma torre, uma montanha.
Ouviste?
Ouviste?

Mas eu não ouvia, só via a tua mão pequena brincando com a chávena do café. Agarrei-a devagarinho, estava gelada e ficava mesmo pequena na minha, olhei-te e nada disse.

Vamos para casa?
A tua voz saiu meio rouca, como se no último momento hesitasses, talvez tivesses percebido mal, talvez eu estivesse a dizer adeus, a mandar-te embora.

Vamos.
A minha resposta ficou a pairar no ar como uma pena, como se o seu verdadeiro significado não fosse real, como se se tivesse perdido no momento. Levantámo-nos, a tua cara estava séria, como se a resposta não fosse o que estavas à espera, como se não soubesses o que fazer agora.

Só a meio caminho de casa me deste a mão, e nessa noite fui dormir em minha casa. Estava bem claro, tu não eras ela, mas também não eras a outra. Não vou mentir, sempre a vou amar. Ela fez parte de mim demasiado tempo para a apagar.
Sempre foste forte, lutas todos os dias por nós.
Quero que saibas...
Não...
Preciso que saibas que todas as noites quando me deito, e todas as manhãs quando acordo, o faço ao teu lado, que não estás em segundo lugar.
Podes posar esse peso que carregas.
Não quero acordar ao lado de mais ninguém.

1\10\2004 - 7.45 am

deixo-te este papel
na nossa almofada
só para dizer bom dia
porque se oiço a tua voz
ou te olho um segundo
não tenho coragem
para ir para o trabalho
Que poetas são esses
que procuram musas
perfeitas e raras
as mulheres-anjo
dos poetas antigos?

Que poetas são esses
imitadores de Fausto
que vendem a alma
pelo calor e amor de
uma mulher-demónio?

Que posso eu querer
que seja mais que tu
não sou poeta, sou homem
sou teu, meu amor
minha mulher-humana
na noite quente
ouvi
uma voz cristalina
e por ter medo
apertei-te junto a mim
só para acordar
na noite quente
sozinho
com os braços
e a cama
e o quarto
e eu
vazios
na noite quente