quarta-feira, julho 27, 2005

A Esfínge

Lembro-me perfeitamente.
Como se fosse hoje.

O meu amigo Ed dava-me boleia para casa depois das aulas, uma disciplina pedagógica qualquer totalmente inútil, que nos tinha ocupado uma tarde inteira.
Nesta altura, poucas pessoas da minha turma ainda me falavam, a maioria tinha decidido que eu era um perfeito sacana por não falar à mulher que me tinha trocado por um amigo.
Falar-lhes.
Se imaginassem o esforço que foi preciso fazer para não lhes arrancar a cabeça a pontapés, quanto mais respirara o mesmo ar que eles.

Mas eu era uma esfínge.
Pura pedra. Nem um sentimento, nem um olhar.
A mesma cara de pedra morena. O mesmo nariz partido. O olhar vago em pregado em frente. E sem ninguém por perto.
Resumindo, o leproso da turma.
Há que ser justo, alguns poucos resistentes ainda me falavam, curiosamente, as mesmas pessoas que me falam ainda hoje.
Curiosamente.

Uma semana antes tinha ido tirar o Mauro do meio de uma briga e tinham-me aberto um sobrolho com uma garrafa.
Nem um queixume. Nem uma lágrima. Piropos às enfermeiras. Uma esfinge.
Nem falsos heroísmos, nem forças sobre-humanas.
Hábitos da juventude.
Voçês aprenderam a andar de bicicleta, eu aprendi a pôr o maxilar no sítio sem pestanejar.

Lembro-me perfeitamente.
O carro seguia a muralha, mesmo na curva que leva ao Rossio. Apanha-se o sol de frente, quando se faz essa curva ao entardecer. Uma luz melosa, avermelhada, que nos bate na cara depois da sombra de uma rua ladeada de plátanos.
Pisquei os olhos e a dor dos pontos fez a minha cabeça abanar.
Mas a cara era a mesma.
Uma esfínge.

Havia muito trânsito (Évora, cinco e meia, só quem cá viveu sabe) e estavamos parados.
O Ed contava-me as últimas notícias sobre a turma, visto que eu, por ser leproso, não as podia saber.
Lembro-me das exactas palavras que ele disse.
"E foi então que a Xana me disse, não sei como podes falar com o Vitor, ele nem é uma pessoa, é um animal".
Ainda disse mais algumas palavras, mas como eu não respondia olhou para mim.
Lembro-me perfeitamente da sua cara.
Espanto.
Preocupação.
Medo.
A principio não percebi porque me olhava assim.
Só quando a primeira lágrima me bateu nas costas da mão que segurava os livros é que me apercebi que chorava.
A mesma cara de pedra morena.
O mesmo nariz partido.
O mesmo olhar vago.
Mas dos meus olhos rolavam lágrimas.
Lágrimas puras, sem soluços, sem som algum.
Limpei a cara devagar, e voltei a olhar em frente.
Fomos em silêncio o resto do caminho.

Acho que o Ed nunca contou isto a ninguém.
Não que eu lho tenha pedido. Acho que para ele não é mais do que uma memória vaga, meio apagada.
Mas mesmo na altura não comentou com ninguém. Nem comigo.
Também, quem iria acreditar?
Uma esfínge, a chorar?

Mas eu lembro-me.
Lembro-me perfeitamente.

11 comentários:

Anónimo disse...

Não tenho mais palavras do que todas as que já te disse e escrevi. Por isso, todo o discurso que poderia deixar aqui seria pouco. Vai sê-lo sempre.

O teu texto veio da alma e isso reflectiu-se no impacto que teve.

Não consigo dizer mais nada além de: Às vezes até as esfinges sofrem e... lamento. Lamento muito.

Todos temos sentimentos e fraquezas e é isso que nos torna humanos. Tu és muito especial só é pena que te escondas (quase) sempre.

S.M.

Tamia disse...

Das esfínges também rolam lágrimas de tristeza, de dor profunda. A máscara por vezes envolve.nos de maneiras inimagináveis, e só quem a transporta sabe a dor que causa.
Beijo

Heavenlight disse...

Eu nunca tive coragem para falar sobre isso; sempre abafei com várias máscaras. A da esfinge também, poruqe a melhor arma é mostrar que somos indiferentes e não sentimos nada.
No entanto, a questão principal é mesmo essa: nós, as esfinges, sentimos, sentimos muito, tanto que até dói!
Quero dizer outra coisa: as esfinges são pessoas diferentes, especiais, no sentido positivo. Por entre os comentários mordazes, está o desejo de se tornarem um de nós.
O teu texto veio da alma, também me pareceu, e por falar em alma posso dizer que ela se reflecte - a meu ver - em todos os teus poemas. Quer acredites ou não, esse reflexo é o de uma alma bonita e sensível, que merece sorrir.

Sophia disse...

Pois, eu também me lembro perfeitamente. E toda a gente da turma sabe perfeitamente de onde vieram os boatos. Acho que todas as pessoas tocadas por "a pessoa que nós sabemos" ficaram um bocado endurecidas, um bocado de pedra.. Não sei como pode haver pessoas assim... mas existem!

JC disse...

Epah, estou um bocado fora da historia. Tamos a falar da nossa "amiga" Alexandra né?
hihihi ( se estiver errado, perdoem-me qq coisinha)
Quanto a ti Vitor(ou Victór? :P), se alguma coisa te disse isso, da-lhe uns safanões, k deve estar estragada ;)
Não tenho alguma razao de queixa de ti, mto pelo contrário. Sempre me ajudaste e vejo em ti um verdadeiro amigo. Curiosamente ja o sinto faz uns 10 aninhos :D
São estas as palavras k verdadeiramente importam!
Caga nisso ;)

ps: devias me ter dito na altura :(
Corbin ;)

Anónimo disse...

diz lá a verdade, estavas a precisar de atenção???!!!

1 desfile de elogios sbe sp bem.

p.

Anónimo disse...

A Esfinge, a do Egipto continua la. Mesmo com o nariz partido, o maxilar esfolado pelo vento, e as marcas de tantas pisadelas de mirones. Esses, os mirones mudam e mudam-se, a sua importancia torna-se nula a medida que o tempo passa. Provocam-nos marcas, cicatrizes do desgaste mas ate essas nos ajudam a desenvolver.
Se é de atenção e elogios que é preciso que venham eles. Os teus amigos sabem que és merecedor de os receberes.
De traiçoes de outro tipo e de palavras e atitudes injustificadas, injustas e duras daquela pessoa (e de outras), nem me livrarei concerteza. Enfim, pseudoamizades ou pseudoamores, ou pseudohorrores...Rejeita-se, critica-se e nega-se a partida o que é diferente, o que se desconhece, o que se visualiza por olhos alheios.

Um grande beijo desta amiga Eva

Anónimo disse...

...Não me livrei ou me livro concerteza de atitudes desse genero.Do genero das que magoam bem. Assim é a Vida...

kisses
...again
Eva

Sophia disse...

Lamento vir novamente importunar, mas detesto comentários que dizem que precisamos de atenção. No caso do Vítor trata-se mais da partilha de algo que aconteceu. Não sei quem é o / a P., mas talvez não seja ninguém da turma ou se for, então deve ser um bocadinho ceguinho/a para não se ter apercebido da situação.

É um sentimento que estava entalado e que agora saiu, espero que seja sinal de que está ultrapassado, não é necessidade de atenção.

CF.

A. disse...

Ainda bem que isso aconteceu... Afinal não havia esfinge nenhuma, apenas a ideia de esfinge! Ainda bem que choraste, porque faz tão bem chorar... E mostra que tens sentimentos e que é humano... E que és corajoso! Porque chorar assim à frente de outra pessoa...
Acho que fazes bem em partilhar a tua história porque é um indicio de que estás a conseguir ultrapassa-la!
Bjs*** grandes e fica bem

Anónimo disse...

Ah, Tarzan!!!